Entrevista publicada na edição nº 397, junho de 2009, do Jornal Mundo Jovem.
Como gerar menos lixo e salvar a Terra?
O problema da produção e do destino do lixo não é tão simples e superficial como pode parecer. Por isso, convidamos o filósofo e ecologista Marcelo Pelizzoli, para responder aos leitores algumas questões mais profundas sobre esse tema, que tanto inquieta a nossa consciência e sensibilidade.Marcelo Pelizzoli,filósofo, ecologista e professor na Universidade Federal de Pernambuco.
Mundo Jovem: Que sociedade é essa, que gera tanto lixo?
Marcelo Pelizzoli: O lixo (resíduos) sempre existiu. Mas hoje mostra-se o elemento recalcado e ao mesmo tempo revelador do drama da humanidade. O drama da pobreza, por exemplo, revelado nos resíduos da subnutrição, vestígios da falta de uma série de vitaminas; o drama da riqueza e da lambança, com seus resíduos monstruosos; o drama da autodestruição da saúde. Tudo isso revela o drama da busca estonteante por sentido, por prazer, em objetos que se avolumam e se descartam (pois o desejo não tem fim). Há uma angústia revelada no lixo, na sua mistura tóxica, no seu esquecimento. O lixo é nossa sombra - pessoas também tornam-se um pouco lixo. O lixo está na lógica da exclusão que adotamos. E como tudo o que é recalcado, ele retorna subrepticiamente em nossa água (o cocô que fazemos vai para a água e volta para nossa boca), em partículas no ar, em elementos dentro do leite, da carne, e alimentos em geral. No lixo da classe média alta, principalmente da classe alta, em que o volume de resíduos chega a ser dez vezes maior do que da classe popular, está revelada a monstruosidade, a autodestrutividade de um modelo de vida. Há, ali, uma noção de ser humano. O que os seres humanos querem? O que estão buscando? O lixo é muito revelador disso. O consumo de coisas está aumentando consideravelmente e as pessoas ainda não estão felizes.
Mundo Jovem: Poderia ser diferente?
Marcelo Pelizzoli: Exige rever o sentido que damos à nossa vida, e o que alimenta nossa existência, nada menos. Bem, aí eu apelaria ao Dalai Lama que, em seu livro, Uma ética para o novo milênio, diz que o problema está ligado ao consumismo. Mas por que ao consumismo? Porque o consumismo está ligado a uma questão de como as pessoas escapam ao sofrimento, buscam a felicidade. Isso Aristóteles também dizia: “Todo o homem busca a felicidade”. Agora, como? Apostando num tipo de desejo: que o desejo existencial de sentido à sua vida seja realizado com objetos. E aí, é claro, como os objetos não realizam, você precisa de um, dois, muitos objetos, coloridos, de todo tipo etc. E aí está o motor do capitalismo. Fazer diferente seria buscar, ir às raízes, à condição existencial do humano. Como se poderia cultivar dimensões de felicidade, de emoções positivas, formas de organização social, que tragam mais realização, para que não se precise apelar tanto a uma completude objetal (um termo que a Psicanálise coloca). Quando a mentalidade da exclusão do outro, dos seres selvagens, dos insetos e bichos, exclusão do doente, do estranho, do sujo, quando essa emoção acabar, integraremos naturalmente o lixo, que é parte de nós.
Mundo Jovem: E a reciclagem do lixo?
Marcelo Pelizzoli: Quando se fala de lixo é preciso retomar o que muitos chamam de quatro erres, que já é clássico. O primeiro erre é Repensar. E eu acrescentaria junto com o repensar a dimensão mais importante ainda, que é Ressensibilizar, sensibilizar as pessoas, tocá-las afetivamente. A questão ecológica não é a questão verde, não é um ramo da Biologia. Esse repensar, ressensibilizar é o primeiro ponto, a raiz da coisa. Depois a Redução, o Reaproveitamento e, por último, a Reciclagem. O nome lixo é um reducionismo para uma gama de materiais diferentes. Só de plástico, por exemplo, há dezenas de formas. O que é preciso dizer é que a reciclagem tem limites; depois de algumas vezes, muitos materiais já não suportam ser reciclados. O grande desafio é o que fazer com uma gama cada vez maior de equipamentos, baterias, pilhas. É preciso saber claramente que, quando compramos isso, estamos deixando a conta verdadeira para nossos filhos e netos. O problema não são as montanhas de lixo apenas, mas tudo o que está implicado nele enquanto consumo e poluição, exclusão social: dramas humanos por excelência. Outro problema é como o lixo está dentro do nosso sangue. Novamente o exemplo do cocô na água. Essa mesma água é a que se bebe. Então, o lixo que a gente produz, está no nosso sangue. Ele vai para a terra, para o leite, para a carne. Ele é reprocessado, mas sempre sobra um tipo de molécula e resíduos químicos que voltam. Esse é um problema, por exemplo, do plástico. Há um dado muito interessante, apurado há muito tempo, que mostra que o homem europeu, nos últimos 40 anos, diminuiu em 50% sua produção de espermatozoides, basicamente por causa dos resíduos de plástico e de agrotóxicos.
Mundo Jovem: Como você vê a estrutura e a gestão da coleta seletiva e da reciclagem no Brasil?
Marcelo Pelizzoli: A administração pública estará sempre com ferro em brasa nas mãos enquanto não se implementar modelos de cidades sustentáveis, retorno a produções e comercialização locais. Reciclagem no Brasil basicamente depende das formiguinhas salvadoras, que são os catadores, as associações que tiram disso seu sustento. Muitas pessoas não têm ideia de quão importante é esse trabalho, e o que elas jogam e como jogam (sujo ou limpo) fora seus resíduos. Tal como Freud denunciou o recalque das nossas sobras e sombras no inconsciente, a ecologia denuncia e faz de novo responsável o consumidor. O lixo é nossa parte, faz parte dos alimentos e materiais. Deve ser integrado e não negado, esquecido, misturado. O ápice da dicotomia é o lixo atômico. Todo lixo é natureza - o problema é que alguns demoram milhares de anos para se incorporarem novamente de modo equilibrado. É muito importante que a sociedade se dê conta disso. Primeiro, é preciso reduzir a quantidade de produção de lixo. Segundo, é preciso separar, reciclar... Não custa lavar os plásticos, vidros, antes de colocar para a reciclagem. Mesmo a reciclagem, que vem depois da diminuição da produção de lixo, já contribui muito para a redução do aquecimento global, pois tudo está interconectado.
Mundo Jovem: Qual o papel da juventude para uma sociedade que gere menos lixo?
Marcelo Pelizzoli: A juventude revela a própria insatisfação como sintoma de algo em crise na atualidade. Porque os desafios que pesam sobre a juventude, sobre as crianças que vão ter que lidar mais adiante com isso, são enormes. O peso, a dívida que está sendo deixada, é enorme. A juventude sempre teve esse papel de lançar gritos de alerta, de se rebelar contra situações. Aliás, a juventude está se rebelando o tempo inteiro, mas muitas vezes de forma negativa, com descontentamento geral, com uso de drogas... A crise humana é muito grande, não se fala aqui de crise econômica. E a juventude é a que mais sente esses problemas. Acho importante aproveitar essa energia, essa garra da juventude, e canalizar, aplicar onde deve ser aplicada, ao boicote às grandes corporações. Aplicar para uma ressensibilização, uma retomada de consciência, criar novas formas de organização em grupo, de participação política, mas, fundamentalmente, tentar boicotar essa situação e criar uma nova configuração para a sociedade, já que os jovens são os que mais sofrem dentro dessa dimensão de inquietude.
Mundo Jovem: Que ações individuais e coletivas podem contribuir para uma menor produção de lixo?
Marcelo Pelizzoli: A organização social em condomínios ecológicos, ecovilas, comunidades rurais alternativas; a valorização das culturas locais e a descentralização dos recursos/atividades; a formação de modos cooperativados de consumo, de empreendimentos. Meu lixo orgânico, por exemplo, volta todo para a natureza, numa composteira. Em três meses ele vira adubo. Ao optar por produtos orgânicos e ecológicos, diminui a poluição ambiental, valorizam-se as produções familiares e locais, diminuem problemas de trânsito e, principalmente, o aquecimento global. Não se tem todos os cálculos certos ainda sobre mudanças em sustentabilidade, mas quando chegarmos a 30% das pessoas adotando isso, a maior mudança civilizatória estará acontecendo. Existem também as ações individuais, no sentido de ressensibilização para a questão. Se o adulto parar, olhar nos olhos de seus filhos e pensar no que está acontecendo hoje e como será daqui a 10, 20, 30 ou 40 anos, com este nível de poluição que está sendo lançado hoje, começará a se motivar, parar de usar plásticos, diminuir os descartáveis, a se preocuparem mais com a política num sentido pleno da palavra, até chegarem à reciclagem, que acho que é a última ponta da questão.